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“Por que e em que mudamos? E em que o passado pode dar-nos confiança?”

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Iluminura de Giovanni BOCCACCIO

O medo é o mais sinistro dos demônios. É interessante pensar o que em nossos demônios permanece sempre igual e o que se transforma quando eles vestem a roupa dos tempos. Semana passada, por exemplo, correu (e foi, em seguida, desmentido) um boato sobre um asteróide que iria colidir contra a terra, causando tsunamis e devastação em massa. Uma ameaça apocalíptica de hoje que se encaixa igualmente bem na crônica medieval ou na ficção científica.

Em Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos, estão reunidas as considerações do grande historiador e medievalista francês George Duby, sobre os maiores temores coletivos que assombravam a Europa no fim do primeiro milênio. Alguns possíveis paralelos com nossas inquietações atuais revelam semelhanças e variações que nos levam a questionar. ”Por que e em que mudamos? E em que o passado pode dar-nos confiança?”

Veja as principais temáticas que inquietavam nossos antepassados:

  1. O Medo da Miséria.

Diferente de hoje, no ano mil, a miséria era geral. As pessoas viviam em condições que seriam, para nós, de extrema pobreza: usavam pouco ferro, os equipamentos agrícolas eram precários e a produção de alimentos, muito baixa. Era difícil conseguir comida. Numa sociedade rígida, onde o pouco que era produzido era confiscado pela igreja ou pelos guerreiros, o povo vivia permanentemente no medo da fome e do amanhã.

Em condições tão adversas, era o grau de união entre as pessoas que tornava a vida suportável. Duby coloca que “esse mundo difícil de privação, é um mundo em que a fraternidade e a solidariedade garantem a sobrevivência e uma redistribuição das magras riquezas. Partilhada, a pobreza é o quinhão comum. Ela não condena, como hoje, à solidão o indivíduo desabrigado, encolhido numa plataforma de metro ou esquecido numa calçada.”

Na sociedade gregária do ano mil, a penúria coletiva suscitou mecanismos de solidariedade e inclusão (grupo familiar, aldeia, senhorio) que, ainda que fossem organismos de exploração, eram também garantia de vínculo e segurança social. E a escassez de alimentos deu origem a uma espécie de sacralização do pão, o dom essencial que Deus dá aos homens. Onde há o medo da fome a consciência de que há pessoas que não tem o que comer e que, amanhã, talvez estejamos no lugar delas, o desperdício é um sacrilégio.

  1. O Medo do Outro

A história da Europa é uma história de invasões. Foram os vikings, os húngaros os mouros, mais tarde os mongóis e então os turcos. Diferentes expedições traziam, por vezes, levas de povos nômades que queriam integrar-se, por vezes, hordas de saqueadores selvagens.

A população da época via chegar pessoas cuja forma de viver, de alimentar-se, de morar eram totalmente diferente das suas, e falando uma língua incompreensível. O estrangeiro, vindo de longe, era o invasor absoluto, que aterrorizava pela estranheza e pelo perigo. Porém, a desconfiança não parava aí: ultrapassando o vilarejo morava o vizinho que agride, e sob o qual incidia a projeção dos piores pecados. O sentimento de estranheza aparecia, ainda, frente àqueles que não pertencia à comunidade cristã: o pagão, o judeu, o muçulmano.

Para os monges cristãos do ano mil, as religiões de outros povos eram agitações heréticas, ou seja, indicavam irregularidades no cosmos que causavam inquietação. Segundo eles, os estrangeiros, esses infiéis, precisavam ser convertidos ou, então, destruídos, pois o reino de Deus se estabelecerá sobre a terra, somente quando toda a humanidade for cristã.

  1. O Medo das Epidemias

Uma população carente, sem estrutura sanitária, sem meios de curar e mal nutrida era alvo privilegiado de epidemias.  No ano mil, o mal que preocupava os cronistas chamava-se “mal dos ardentes” ou “fogo de Santo Antônio”. Sabe-se hoje que era um quadro carencial, provocado pelo consumo do esporão do centeio presente na farinha. Na época, era uma doença desconhecida, que causou terror imenso. Tentava-se de tudo, mas o único recurso era o sobrenatural.

Diante de ondas de mortalidade que não se sabia explicar, reivindica-se a graça do céu e retirava-se das tumbas os santos protetores. As epidemias foram consideradas como punição do pecado. Em meio as mortes e ao sofrimento, procuravam-se responsáveis e bodes expiatórios: eram os judeus e os leprosos que haviam envenenado o poço.

  1. O Medo da Violência

A morte e a dor física contavam pouco e a sociedade medieval vive, morre e se diverte de forma muito brutal. A violência estava muito presente na guerra e nos esportes (torneios que imitavam a guerra). Para os guerreiros, constituía o ideal de “aventura”. Os bandos de cavaleiros, jovens nobres sem vínculo, espalham o terror pelos campos. Para os camponeses, saques nas colheitas e espolio dos vilarejos eram sempre eminentes.

Havia banditismo e as pessoas eram truculentas e brigavam entre si. Algumas atitudes de violência eram aceitas. Nos conflitos familiares, por exemplo, era admitido que o marido batesse na sua mulher com violência, eventualmente podia matá-la e, se fosse adultera, queimá-la. Na punição dos castigos, imperava a brutalidade e a selvageria. As penas, aplicadas publicamente, constituíam espetáculos sangrentos e tinham o objetivo de servir de exemplo à população.

  1. O Medo do Além.

Talvez o ponto onde a sociedade medieval mais se distancia de nós seja na forma como o invisível estava presente e como detinha tanto poder quando o mundo visível. Ninguém duvidava que existia um outro mundo. Para eles, a vida prolongava-se para além da morte e, em contrapartida, os mortos estavam sempre presentes, em especial na cerimônias em que eram evocados.

Nada se detém e tudo prosseguiria na eternidade, restava se apoiar na família e nos vizinhos, que solidariamente conduziam o indivíduo através das atribulações da vida e na provação da passagem da vida à morte. As cerimonias fúnebres eram eventos ritualísticos e públicos que visavam ajudar o morto e os vivos.  À pessoa que morria para que ocupasse, no além, um lugar que não lhe fosse muito desagradável; e aos que ficavam, para que, refletindo sobre as ameaça que pesavam sobre suas cabeças em face aos pecados cometidos nesta vida, tivessem a oportunidade de penitenciar-se e escapar a danação.

Pinturas e Iluminuras do Giovanni BOCCACCIO

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LIMA, A. A. Medos medievais, medos de hoje, 2017. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/medos-medievais-medos-de-hoje>. Acesso em: dia/mês/ano.