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Ninguém duvide: ter “vergonha na cara” é um patrimônio precioso.  Sob determinadas condições, no entanto, ela se torna tóxica.

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SIMBERG, Hugo. The garden of death,  1896.

Ninguém duvide: ter “vergonha na cara” é um patrimônio precioso.  Em doses adequadas, o rubor inesperado nos conta que somos humanos e, consequentemente, limitados. Pode nos apontar onde erramos e sinalizar quando estamos expostos. É um sentimento saudável, que promove a autoconsciência, e que não se deveria perder. Sob determinadas condições, no entanto, ela se torna tóxica.

Vergonha tóxica é como um sangramento interno, um rompimento consigo mesmo. Como, por exemplo, quando uma vítima, ao lembrar da agressão sofrida sente, não raiva, mas vergonha. As circunstâncias e consequências desse adoecimento são examinadas por Salmon Rushdie, no romance intitulado, precisamente,  Vergonha.

O cenário ficcional retrata a luta de poder entre duas famílias de um recém proclamado país asiático. Através da história e seus personagens, bem menos distantes de nós do que pode parecer num primeiro momento, Rushdie reflete sobre desordens causadas pela vergonha tóxica internalizada: o narcisismo, a paranoia, a grandiosidade, a bancarrota espiritual e a criminalidade.

Há um círculo vicioso: sentir-se irremediavelmente inadequado, sem valor, sem esperança torna o ser humano inseguro, irresponsável e cruel – em relação a si mesmo e em relação ao próximo. Tal indivíduo é um ideal integrante e perpetuador de sistemas morais baseados na vergonha como dispositivo de regulação. Tais sistemas, não por acaso, resultam promotores de novas humilhações,  autoritários e, fundamentalmente, violentos . “Todas as histórias são assombradas por fantasmas das histórias que poderiam ter sido”, escreve Rushdie.

capa “Não muito tempo atrás, no East End de Londres, um pai paquistanês matou sua única filha porque, ao fazer amor com um rapaz branco, ela atraíra tamanha desonra para sua família que só o seu sangue poderia lavar a mancha. A tragédia foi intensificada pelo enorme e evidente amor pela filha abatida e pela cerrada relutância de seus amigos e parentes (todos “asiáticos” para usar o temo confuso destes dias difíceis) em condenar sua ação. Entristecidos, eles disseram aos microfones das rádios e às câmaras de televisão que compreendiam o ponto de vista do homem e continuaram a apoiá-lo mesmo quando se soube que a garota não tinha “ido até o fim” com seu namorado. A história me horrorizou quando a ouvi, horrorizou-me de um jeito bastante óbvio. Eu recentemente havia me tornado pai e portanto acabara de ser capaz de avaliar quão colossal tem de ser a força necessária para fazer um homem voltar uma faca contra sua própria carne e sangue. Mas ainda mais horrorizado fiquei ao me dar conta que, como aqueles amigos entrevistados etc., eu também me descobri entendendo o assassino. A notícia não me pareceu alheia. Nós que crescemos em uma dieta de honra e vergonha ainda somos capazes de captar o que deve parecer impensável para as pessoas que vivem pós-morte de Deus e da tragédia: que homens sacrifiquem seu mais querido amor no implacável altar de seu orgulho. (E não só homens. Depois ouvi falar de um caso em que uma mulher cometeu crime idêntico por idênticas razões.) Entre a vergonha e a falta de vergonha há um eixo em torno do qual giramos; as condições meteorológicas nesses dois polos são do tipo mais extremo e feroz. Falta de vergonha, vergonha: as raízes da violência.”

O grande risco para o qual Rushdie alerta é que a polarização entre honra e vergonha, quando projetada no mundo, faz eclodir comportamentos compulsivos e violentos. A vergonha reprimida se transforma em peste, em fera. Explode. Em torno do eixo da violência, um dos lados cumpre o papel de legítimo (?) algoz e outro de necessária (?) vítima. De um lado os virtuosos, de outro os pecadores.

“Essa oposição – o epicurista contra o puritano – é a verdadeira dialética da história. Esqueça esquerda-direita, capitalismo-socialismo, preto-branco. Virtude versus vício, ascetismo versus deboche. Deus contra o Diabo: esse é o jogo. Messieurs, mesdames: faites vos jeux.

“A questão”, um dos meus amigos colocou, “é que essa oposição existe mesmo; mas é uma dialética interna”. Isso fazia sentido. A contradição não importa; eu próprio sou capaz de sustentar vários pontos de vista inconciliáveis ao mesmo tempo sem a menor dificuldade. Não acho que os outros sejam menos versáteis.”

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LIMA, A. A. Salman Rushdie sobre a vergonha., 2017. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/salman-rushdie-sobre-a-vergonha>. Acesso em: dia/mês/ano.