Continuam existindo muitas coisas entre o céu e terra, e a filosofia… continua vã.
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ENCLAUSURADO: O HAMLET CONTEMPORÂNEO DE IAN MCEWAN.
Recorte de ilustração de Brian PIKE.
Tenho um fraco por releituras. Concordo que Shakespeare é Shakespeare. Tem todo meu respeito e admiração. Mas também genial e candidato a clássico indispensável é a releitura contemporânea que o filósofo Ian McEwan faz de Hamlet.
Dentre os personagens Shakespeareanos, Hamlet tem sido indicado como o de maior complexidade psicológica, o primeiro “homem moderno”. Um tipo reflexivo e isolado, num conflito interno entre ideais exaltados, forçado a esconder sua natureza íntima em ambientes corruptos. Sua história é bem conhecida: o príncipe da Dinamarca retorna para casa e descobre que sua mãe havia se unido ao seu tio, assassino de seu pai e usurpador do trono (daí o famoso “algo podre no reino da Dinamarca”). O fantasma do pai lhe aparece e pede que vingue sua morte, tarefa para a qual o jovem não tem inclinação natural.
O Hamlet contemporâneo, de Mc Ewan, por sua vez, narra sua história trágica a partir de outra – e inusitada – perspectiva. Em Enclausurado, o enredo retoma a ideia primordial do conluio entre tio e mãe contra o pai, mas coloca o filho no lugar de um feto não nascido. Do útero de sua mãe, ele observa indignado e impotente o desenrolar da trama.
Entremeando o relato, McIwan traz reflexões – por vezes irônicas – sobre as contingências do mundo atual e como vem se constituindo o “ser ou não ser” do homem contemporâneo, muitas vezes marcado pela auto-indulgência de um não nascido. Diferente do pensativo Hamlet de Shakespeare, o personagem de hoje enuncia outra forma de experiência trágica:
“Sentirei, logo serei. Vou ser ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.
O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha.”.
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LIMA, A. A. Enclausurado: o Hamlet contemporâneo de Ian McEwan, 2017. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/o-hamlet-contemporaneo-de-ian-mcewan>. Acesso em: dia/mês/ano.