Ser rir é o melhor remédio, humor é sabedoria. Não me refiro a ironia, que ataca e ri do outro. O que ajuda a viver é saber rir de si mesmo e, com humildade e alegria, ir preenchendo de leveza o espaço entre o plausível e o disparate, entre absurdo e uma multiplicidade de sentidos. Nesta arte lúcida do insólito/poético, o argentino Júlio Cortázar foi mestre.
JULIO CORTÁZAR E ``AS HISTÓRIAS DE CRONÓPIOS E DE FAMAS``
Ser rir é o melhor remédio, humor é sabedoria. Não me refiro a ironia, que ataca e ri do outro. O que ajuda a viver é saber rir de si mesmo e, com humildade e alegria, ir preenchendo de leveza o espaço entre o plausível e o disparate, entre absurdo e uma multiplicidade de sentidos. Nesta arte lúcida do insólito/poético, o argentino Júlio Cortázar foi mestre.
Em Histórias de Cronópios e de Famas, esse olhar atravessa objetos e situações cotidianos e desemboca em narrativas inusitadas. Bem humoradas e, por vezes, levemente melancólicas (não, estas características não são opostas!), as tiradas de Cortázar desconcertam e surpreendem. São fantasias, reflexões e pequenos ensaios, que foram escritos entre 1953 e 1959.
Para entender o título há que conhecer a tipologia de Cortázar, onde cronópios são seres verdes e úmidos que “quando cantam suas canções preferidas, ficam de tal maneira entusiasmados que frequentemente se deixam atropelar por caminhões e ciclistas, caem da janela e perdem o que tinham nos bolsos e até a conta dos dias”. Já os famas são criaturas práticas, organizadas e trabalhadoras, capazes de grandes gestos de generosidade. Os famas respeitam os cronópios; os cronópios tem pena dos famas. E há ainda outra categoria, as esperanças, que são crédulas, tolas e sedentárias.
Além da apresentação do universo composto por estes personagens e suas relações, o livro traz, também, uma sessão composta por “instruções” diversas. Instruções para chorar, cantar, subir uma escada, matar formigas em Roma. Segue o Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio, uma observação vintage, mas muito atual em tempos de proliferação de bugigangas “smart”.
“Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com ancora de rubis; não dão de presente somente este miúdo quebra pedras que você atará ao pulso e levará para passear. Dão a você – eles não sabem, o terrível é que não sabem – dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a você como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perde-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio”.(p.16)
No capítulo intitulado Estranhas Ocupações, Cortázar descreve as atividades e aventuras de uma família incomum, que gosta “das ocupações livres, das tarefas sem importância, dos simulacros que nada adiantam”. Vem daí uma lição sobre a liberdade de se atribuir sentido e valor ao que se bem entender que, inclusive, inspira a iniciativa deste blog.
“Para lutar contra o pragmatismo e a horrível tendência à consecução de fins úteis, meu primo mais velho defende a prática de arrancar um bom fio de cabelo da cabeça, dar-lhe um nó no meio e deixá-lo cair suavemente pelo buraco da pia. Se o cabelo ficar preso no ralo que costuma haver nesses buracos, bastará abrir um pouco a torneira para que ele se perca de vista.
Sem perda de um instante, deve-se iniciar a tarefa de recuperação do cabelo. A primeira operação se resume em desmontar o sifão da pia para ver se o cabelo ficou agarrado em alguma das sinuosidades do cano. Se não for encontrado, deve-se abrir o pedaço do cano que vai do sifão ao encanamento do esgoto principal. É certo que nessa parte aparecerão muitos cabelos e será preciso cotar com a ajuda de toda a família para examiná-los um a um à procura do que tem um nó”. (p.29)
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LIMA, A. A. Julio Cortázar e as “Histórias de Cronópios e de Famas”, 2016. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/julio-cortazar-e-historias-de-cronopios-e-de-famas>. Acesso em: dia/mês/ano.
Deu uma vontade ( e saudade) de reler Cortazar!!!
Muito bom. Vou ler o livro ha muitos anos nao lei nada de Cortazar.