Em meio a tantos adereços que acompanham o Natal, Kerényi e Jung ajudam a sintonizar com as essências. Importa é resgatar a inocência e ver o mundo, mais uma vez, com olhos de criança.
C. G. JUNG E KARL KERÉNYI SOBRE O MITO DA CRIANÇA DIVINA.
Difícil passar incólume pelo Natal. Independentemente de você estar entre os que amam ou entre os que odeiam a data, a leitura de A Criança Divina, uma introdução à essência da mitologia pode trazer uma perspectiva interessante às suas considerações e, quem sabe, vivências natalinas. O texto, uma edição conjunta do filólogo e cientista da religião Karl Kerényi e do psiquiatra Carl Gustav Jung, discute, não o nascimento de Jesus especificamente, mas o tema mais amplo da “criança eterna” ou do “deus criança”.
Uma das grandes sacadas de Jung é a de que o aspecto psicológico do ser humano se apresenta através de imagens: a psique é imagem! E que as imagens psíquicas se organizam em narrativas simbólicas, metáforas das possibilidades de experiência humana. São as fantasias, os delírios, os sonhos, os contos de fada, os mitos, as religiões. Cada uma destas manifestações, à sua forma, circunscreve e caracteriza de forma aproximada um conteúdo que atua de forma mais ou menos inconsciente.
O tema paradoxal da criança que é “menor que o pequeno e maior que o grande” tem inúmeras facetas. Para o indivíduo, sua função central é promover um retorno às origens psíquicas, fonte da espontaneidade. Jung escreve:
“O motivo da criança não representa apenas algo que existiu no passado longínquo, mas também algo presente; não é somente um vestígio, mas um sistema que funciona ainda, destinado a compensar ou corrigir as unilateralidades ou extravagâncias inevitáveis da consciência. […] A consciência diferenciada (do eu) é continuamente ameaçada de desenraizamento, razão pela qual necessita de uma compensação através do estado infantil ainda presente”. (p.125)
“Na medida em que o símbolo da criança fascina e se apodera do inconsciente, seu efeito redentor passa a consciência e realiza a saída da situação de conflito, de que a consciência não era capaz: o símbolo é a antecipação de um estado nascente de consciência. Enquanto este estado não se estabelece, a “criança” permanece uma projeção mitológica que exige uma repetição pelo culto e uma renovação ritual. O Menino Jesus, por exemplo, permanece uma necessidade cultural, enquanto a maioria das pessoas ainda é incapaz de realizar psicologicamente a frase bíblica. “A não ser que vos torneis como as criancinhas”. (p.133).
Por essa lente mitológica, o Natal aparece em sua psicológica universalidade. Kerényi ensina que o mito, assim como a poesia ou a música, é uma arte: uma criação da humanidade que, para ser compreendida, não deve ser pensada, e sim vivida de forma direta. A arte da mitologia se constitui através da movimentação de padrões de imagens, os mitologemas, que estão contidos em histórias e são transmitidos pelas tradições. O paralelo mais próximo da mitologia, para Kerényi, é a música: há um tema básico que pode ser reconhecido, ainda que apresentado em diferentes arranjos e ajustado à diferentes tonalidades.
“A mitologia pode estar em conformidade com sua época em maior ou menor medida, exatamente como a música. Pode haver épocas em que se é capaz de expressar só com música o que se “concebeu” de mais sublime. […] Desse aspecto figurativo, inteligível e musical da mitologia resulta a atitude correta para considerá-la: permitir que os mitologemas falem por si mesmos, e simplesmente prestar atenção. Toda explicação deve permanecer no mesmo nível que a explicação de uma obra de arte musical ou, no máximo, poética. É evidente que para isso é preciso ter “ouvido” especial, assim como para ocupar-se com música ou poesia. “Ouvido” significa, também nesse caso, vibrar junto, derramar-se junto.” (p. 17)
Quantos de nós, hoje em dia, preservam essa “afinação” de ouvido? Certamente não muitos. O próprio Kerényi se questiona: “Afinal de contas, ainda podemos ter um acesso imediato à mitologia, a ponto de vivenciá-la e desfrutá-la?”
Cada um, obviamente, responde por si. Na proposta de Jung percebe-se que pode passar pela Psicologia o caminho para “treinar o ouvido” e escutar a narrativa do nascimento da divindade-criança, seja ela Buda, Zeus ou Cristo, não como verdade histórica nem como invenção, mas como a declaração de uma experiência simbólica passível de ser vivida.
Em meio a tantos adereços que acompanham o Natal, Kerényi e Jung ajudam a sintonizar com as essências. Importa é resgatar a inocência e ver o mundo, mais uma vez, com olhos de criança. No vídeo abaixo, você ouve Maria Bethânia declamar um trecho do Poema do Menino Jesus, do genial Fernando Pessoa (Alberto Caieiro), poeta que ouvia como poucos a música da criança eterna.
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LIMA, A. A. C. G. Jung e Karl Kerényi sobre o Mito da Criança Divina, 2016. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/jung-kerenyi-sobre-o-mito-da-crianca-divina>. Acesso em: dia/mês/ano.