O caminhar, assim como o pensar, é um fundamento da condição humana.
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UMA FILOSOFIA DO CAMINHAR: TRÊS GRAUS DE LIBERDADE (A SEREM EXPERIMENTADOS).
Tarsila do AMARAL, Abaporu, 1928
Atividade física, gesto poético e prática meditativa, o caminhar tem o potencial de promover a união de corpo, alma e espírito. Quem já se aventurou, sabe: o esforço é grande, o cansaço inevitável. Ao mesmo tempo, o bem estar que se sente nas caminhadas é intenso e tem tonalidades variadas: prazer, alegria, serenidade, plenitude. Diferentes sabores para a simplicidade da vida. Em “Caminhar, uma filosofia”, o francês Frédéric Gros coloca:
“A experiência da caminhada constitui sem dúvida uma reconquista, porque, ao submeter o corpo a uma atividade demorada – que traz alegrias, mas também cansaço e tédio – faz surgir, com o descanso, a plenitude, essa segunda alegria, mais profunda, mais fundamental, ligada a uma afirmação mais secreta: o corpo respira tranquilamente, eu estou vivo e aqui”.
Apesar da monumental oferta de meios de transporte mais rápidos e coletivos, de tempos em tempos, lembramos que somos seres bípedes e, por natureza, pedestres. Contraponto desejável às rotinas sedentárias de hoje em dia, a experiência de uma caminhada mais longa ou mais exigente oferece, através da lenta e repetitiva uniformidade dos passos, a oportunidade de perceber que o caminhar, assim como o pensar, é um fundamento da condição humana.
O ato de partir, de “botar o pé na estrada”, carrega em sua essência um exercício, muitas vezes um grito, de liberdade. Ao caminhante se apresentam, segundo a perspectiva de Gros, três diferentes formas ou graus de liberdade a ser gozada:
- Liberdade de dar uma escapulida (suspensiva): é a possibilidade de, pelo tempo da caminhada, deixar de lado as preocupações e pensar em outra coisa. Esquecer das confusões no trabalho, do peso dos hábitos, escapar das redes sociais. Uma liberação pontual, onde a vida cotidiana e suas inércias são temporariamente postas em parênteses. Mais do que, por exemplo, uma longa vigem, a caminhada oferece uma sensação de liberdade por conseguir desfazer nossas ilusões sobre o que nos é indispensável. Quem caminha aprende a avaliar o que é realmente necessário carregar.
“Para quem nunca passou por essa experiência, a simples descrição do estado do caminhante logo parece um absurdo, uma aberração, uma servidão assumida por opção. Porque, espontaneamente, o citadino interpreta como privação aquilo que ao caminhante se revela como uma liberação: não estar mais preso na teia de intercâmbios, não mais se limitar a ser um nó na rede que redistribui informações, imagens, produtos; notar que tudo isso tem por realidade e importância tão somente as que eu lhe atribuir. Meu mundo não apenas não desaba por eu não estar conectado, mas além disso essas conexões de repente se mostram como entrelaçamentos pesados, sufocantes, apertados demais.”
- Liberdade de romper com o que está podre (transgressora): mais agressiva e rebelde, diz respeito à decisão de romper com o que há de convencional, desgastado ou enganoso na vida que se leva.
“Já não se trata de se livrar do artifício para experimentar alegrias singelas, mas sim de encontrar uma liberdade que seja o limite de si e do humano, que seja o transbordamento em si de uma Natureza rebelde que me ultrapassa. A caminhada pode fomentar esses excessos: excessos de cansaço que levam a mente ao delírio, excessos de beleza que abalam a alma, excessos de embriagues nos cumes, no alto dos desfiladeiros (o corpo explode). Caminhar acaba despertando em nós esta parcela rebelde, arcaica: nossos apetites ficam grosseiros e irredutíveis, nossos ímpetos, inspirados. Por que o caminhar nos posiciona na vertical do eixo da vida: arrastados pela torrente que jorra logo abaixo de nós”.
- Liberdade de desprender-se das máscaras (renunciante): é a perspectiva de atemporalidade que se vislumbra durante longos percursos, quando se caminha há tanto tempo que se perde a noção das horas que se passaram desde a saída e quantas faltam para a chegada. Perdem importância as lembranças, os planos futuros, os papeis sociais. Tudo que é necessário encontra-se concentrado no peso das pernas e da mochila e sente-se que é possível seguir para sempre naquele passo.
“Uma vida de agora em diante toda itinerante (é a etapa do mendigo errante) em que a caminhada é infinita, aqui e ali, dá mostras dessa coincidência entre o Si-mesmo sem nome o onipresente coração do Mundo. A essa altura, o sábio renunciou a tudo. ´e a mais alta liberdade: a do desprendimento perfeito> Já não estou envolvido, nem comigo mesmo nem com o mundo. Alheio ao passado e ao futuro, não sou nada além do eterno presente da coincidência. […] É no instante em que se abre mão de tudo que tudo nos é oferecido, no instante em que não se pede mais nada que tudo é entregue, em abundância. Tudo significando a própria intensidade da presença.”
O caminhar, ao mesmo tempo que esvazia a cabeça, predispõe à reflexão. A lista dos grandes filósofos que foram, também, grandes andarilhos é impressionante. Em “Caminhar, uma Filosofia”, Gros examina função do caminhar na vida e no pensamento de mestres da Filosofia ocidental. Nietzsche compunha ao ar livre e, no seu período mais produtivo, caminhava de 3 e 10 horas, todos os dias. Kant era um sujeito sistemático e dava valor higiênico máximo às suas pontuais caminhadas diárias. Do silêncio das longas caminhadas vieram as inspirações de Proust, Rousseau, Thoreau, Rimbaud. Histórias de passeios e peregrinações que dão testemunho de como o movimento do corpo, de alguma forma, engendra o movimento do espírito.
Outros textos que abordam a caminhada de uma perspectiva filosófica/poética e merecem atenção são:
Caminhada, de Henry David Thoreau
A História do Caminhar, de Rebbeca Solnit
Caminhar, Uma Revolução, de Adriano Labbucci.
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LIMA, A. A. Uma Filosofia do caminhar: três graus de liberdade (a serem experimentados). 2017. Disponível em: <http://www.ressonancias.com/uma-filosofia-do-caminhar>. Acesso em: dia/mês/ano.
Obrigada! Fazia tempo que não caminhava e vocês me retituiram a vontade.
Que coisa boa, Isis! Que o seu caminho seja de muita liberdade e paz! 🙂
Algumas vezes deixo de ir trabalhar de bicicleta, que leva apenas 10 minutos, para ir caminhando – geralmente ajusto o passo para escutar um podcast de 20 a 30 minutos. Vou começar a fazer isso mais vezes, mas eventualmente sem o fone de ouvido. Obrigado pelo texto
O caminhar tem um tempo diferente, não é? Agradeço a leitura e o comentário, Mario! Abraço.